sábado, 24 de dezembro de 2011

PERDIÇÃO: Resenha - 4



PERDIÇÃO, ENTRE A REDE
DA FAMA E O RIO DE LAMA


Luciene Lemos de Campos


O escritor Luiz Vilela (Ituiutaba, Minas Gerais, 1942), formado em Filosofia, tendo atuado como jornalista e alcançado a consagração literária como contista, presenteou-nos, aos leitores brasileiros, neste final de 2011, com um romance grandioso: Perdição.
A obra, em linguagem simples, coloquial, revela, no entanto, profundos conhecimentos linguísticos, filosóficos, religiosos e literários, entre outros. Perdição mescla comédia e tragédia, humor e ironia ácida, mestria na utilização do diálogo e domínio da arquitetura romanesca. Jogos e brincadeiras com as palavras, simplicidade e precisão vocabular, peculiares aos seus contos e presentes em suas novelas, tem neste seu quinto romance nuances novas no âmbito da sua ficção.
Luiz Vilela busca, no repertório de signos socialmente construídos, palavras que desvelam uma sociedade pseudomoralista movida por interesses disfarçados de valores éticos, morais, religiosos e de falsos bons costumes. O autor também delineia, através das falas das personagens, o quanto pensamento e linguagem refletem a realidade de uma forma diferente da percepção daqueles que não conhecem os códigos, seus signos e seus símbolos.
Leo, o protagonista, é amigo de infância do narrador, o jornalista Ramon. O romance avança pelo diálogo de Ramon com diversas personagens que convivem no dia a dia de uma pequena cidade fictícia do interior de Minas (mas poderia ser qualquer cidade do país, até mesmo um bairro distante incorporado a alguma região metropolitana). Ramon ouve as histórias e, ao mesmo tempo, revela que a retórica, os signos e símbolos — as palavras, enfim — desempenham um papel central no comportamento das pessoas, atingindo de forma mais cruel, e irônica, aqueles que não são capazes de decodificá-los.
A trajetória de Leo, no relato feito pelo narrador, enreda-se nas histórias das demais personagens de Perdição e ao fluxo histórico de sua pequena cidade. A narrativa, para tanto, remete a figuras da mitologia local no mesmo passo que dialoga com grandes obras da literatura mundial. E, no âmbito da poética de Luiz Vilela, dialoga com grandes obras da literatura mundial e retoma motivos que são recorrentes na obra do escritor.
Nesse diapasão, surgem no enredo, entre outras e muitas personagens, a dona da pensão, o vendedor do disk-peixe, o dono do jornal, os feirantes e a mulher do protagonista: ela, Gislaine, passará por uma grande transformação e suas atitudes surpreenderão ao leitor.
Também surgem figuras da política local, em dois diferentes momentos históricos, entre os quais pontificam os prefeitos, os vereadores, os vigários e outras personagens da elite de Flor do Campo, pois este é o nome da pequena cidade ficcional criada por Luiz Vilela.
Das personagens da mitologia popular, ganham destaque uma cobra inspirada na Cobra Norato, a Moçalinda e o Jacaré Papudo.
Entre os grandes da literatura mundial, e inúmeros são de algum modo invocados em Perdição, mencionemos aqui, a título de exemplo, Homero, Virgílio e Rostand, além da Bíblia, motivo recorrente ao longo de toda a narrativa.
Quanto aos motivos recorrentes da literatura do próprio Luiz Vilela, observamos que se presentificam, entre muitos outros, o amor, o erotismo, a religião e o riso literário.
Desse conjunto de características que enunciamos, temos a palavra como o centro irradiador da potência da escrita de Vilela. A palavra é um signo verbal por excelência, e Luiz Vilela a emprega magistralmente.
Isso porque Luiz Vilela é um mago que manipula a linguagem e une o clássico, o moderno e o contemporâneo em um enredo com ares de ingênuo, mas profundamente sofisticado em sua aparente simplicidade, pois tempera a fábula encenada com a boa prosa mineira.
Nesse universo, que se vê invadido por modismos globalizados, a reflexão de Vilela é vigorosa, desmistificadora de um Brasil em que a barbárie sucede à barbárie sem nenhum intervalo civilizatório e em que, à pobreza extrema, sucede, sem maturação social, um consumismo desenfreado, irreflexivo.
Ao enredar temas universais como fama, irracionalidade e nulidade humanas, o autor propicia reflexões acerca do “ser alguém” e do “não ser ninguém” em uma sociedade cada vez mais dragada pela rede da fama.
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Nesse contexto, com uma passagem do Apocalipse, Vilela encerra a narrativa: “E deus limpará de seus olhos toda lágrima, e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor.” Isso porque, na Babel-Babilônia da luta pela fama e da guerra pelo dinheiro e pelo enriquecimento, a personagem central de Perdição encontra um rio de lama e um universo de dissolução, prelúdios do seu próprio fim.
Com enredo aparentemente simples e banal, a obra propicia reflexões — inquietas reflexões — acerca da arte de usar as palavras e sobre a religião, o homem, o sexo, a sedução e a hipocrisia, fazendo de Perdição leitura imperdível para quem aprecia a boa literatura.
Nesse sentido, o livro é, também, um belo presente de Natal, por ser um ótimo presente, a qualquer momento do ano, para as pessoas a quem realmente queremos bem.

Luciene Lemos de Campos, Mestre em Estudos Fronteiriços pela UFMS, com o estudo “A mendiga e o andarilho: a recriação poética de figuras populares nas fronteiras de Manoel de Barros” (2010), e ingressante (2012) no Mestrado em Letras da UFMS, Câmpus de Três Lagoas, é professora de Língua Portuguesa na SED/MS; lucienelemos10@yahoo.com.br.


Nota de 27 dez. 2011 - versão anterior e condensada desta resenha foi publicada hoje em:
CAMPOS, Luciene Lemos de. Perdição, um belo romance. Diário Corumbaense, Corumbá, MS, ano V, nº 1148, 27 dez. 2011, p. 2, seção Artigo. Disponível em < http://www.bancadigital.com.br/dcorumbaense/reader2/ >.
 

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